terça-feira, 12 de setembro de 2017

Maria Clara Di Pierro: “Perdemos 3,2 milhões de matrículas na Educação de Jovens e Adultos”

A educadora da Faculdade de Educação da USP diz que o programa não se adéqua às necessidades de adultos que precisam estudar e trabalhar.



















No Brasil, pessoas entre 4 e 17 anos são obrigadas por lei a estudar. Quem não se encaixa nessa faixa etária ou está numa idade muito defasada em relação ao ano que deveria estar cursando – como um jovem de 16 anos que ainda está nos primeiros anos do fundamental – pode contar com a  Educação de Jovens e Adultos (EJA). Hoje, a EJA é a alternativa oferecida pelo Estado para dar educação àqueles que não tiveram acesso ou desistiram da escola. O sistema de educação para adultos é de extrema importância para a formação de cidadãos, conscientes de seus deveres e direitos, e para a economia do país. Agregar educação significa agregar produtividade. Essa é uma área em crise no país.
Segundo o Censo Escolar da Educação Básica de 2014, as matrículas em EJA vêm caindo drasticamente nos últimos anos. Em 2006, mais de 8,3 milhões de brasileiros acima dos 15 anos voltaram a frequentar a escola. Oito anos depois, foram registradas 3,2 milhões de matrículas a menos na modalidade. “Essa queda mostra uma regressão. Vai na contramão dos direitos educativos já consolidados na nossa legislação”, afirma Maria Clara Di Pierro, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em educação de adultos.

Segundo ela, “a EJA é uma ferramenta preciosa para o desenvolvimento de qualquer país”. Especialmente do nosso, que tem cerca de 13 milhões de analfabetos. Dados do IBGE de 2014 estimam que o número represente 8,7% da população acima de 15 anos. Quando o critério é o analfabetismo funcional, os índices são ainda piores: 27% dos brasileiros são capazes de decodificar letras e números, mas não compreendem o que leem.
Em entrevista a ÉPOCA, Maria Clara apresentou possíveis motivos para a queda da procura de adultos por instrução e comentou a importância de investir mais nesse tipo de ensino. “A lógica de investir nas novas gerações e esperar os mais velhos morrerem é equivocada. Não é possível esperar as crianças crescerem para o país se desenvolver.”
ÉPOCA - A que a senhora atribui a diminuição expressiva do número de matrículas na EJA?
Maria Clara Di Pierro - Desde 2007, essa diminuição vem se manifestando. É uma queda contínua, que atinge as redes pública e privada, os ensinos fundamental e médio, as redes estadual e municipal. É um fenômeno que aparece como paradoxo. Em 2007, durante o segundo mandato do Lula, Fernando Haddad, que era ministro da Educação, inclui a EJA nos programas de assistência estudantil do governo. Ela passa a ter um livro didático, direito à merenda e ao transporte. Além disso, começa a receber recursos do Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação]. Com isso, em tese, aquelas condições precárias que passamos anos e anos denunciando estariam no caminho para ser superadas. No entanto, na contramão das expectativas, foi a partir daí que a demanda passou a cair. Estamos pesquisando para compreender esse fenômeno, mas ainda não há uma resposta cabal para sua pergunta. Apresento quatro hipóteses de ordens distintas que, juntas, estariam operando para a queda do número de matrículas. 
ÉPOCA - Quais são essas hipóteses?
Maria Clara - A primeira delas tem a ver com o mercado de trabalho. Durante o período em que a economia e as taxas de emprego cresceram, o mercado absorveu mão de obra mesmo com baixa qualificação, segundo dados do Pnad [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios]. Ou seja, a pressão no mercado de trabalho não estaria operando em favor de as pessoas retomarem o estudo. Se for essa a lógica, deveremos verificar um aumento da procura por matrículas nos próximos anos, já que o mercado de trabalho está mais seletivo.
A segunda hipótese é que ainda não construímos uma cultura do direito à educação ao longo da vida. O mesmo não acontece com a cultura do direito à educação na infância e na adolescência, que vem sendo construída desde a redemocratização. Hoje, é inaceitável que uma criança esteja fora da escola na chamada idade escolar. Uma mãe analfabeta, com muito baixa escolaridade, vai brigar pelo direito do filho a ter uma vaga na escola. Mas provavelmente não brigará pelo dela. Ela não se vê como alguém que tem direito à educação.
ÉPOCA - O que poderia ser feito para construir a cultura do direito à educação ao longo da vida?
Maria Clara - Falta atitude convocatória do poder público. Mobilizar adultos para estudar é difícil em vários países. Nessa etapa da vida, a educação vai competir com outras esferas prioritárias da vida: trabalho, família, atuação social e prática religiosa, por exemplo. Políticas de EJA demandam comunicação, convocação, mobilização, motivação, o que não acontece no Brasil – apesar de a Lei de Diretrizes e Bases dizer que o governo tem de fazer chamada pública. Com os meios de comunicação que temos hoje, isso poderia ser feito por mensagem de celular, rádio, televisão e internet. O governo, no entanto, apenas publica no Diário Oficial que as matrículas da EJA estão abertas. Obviamente, a repercussão é muito baixa.
ÉPOCA - Qual é a terceira hipótese?
Maria Clara - A inadequação da política pública, a começar pelo financiamento insuficiente. Apesar de a EJA estar incluída no Fundeb, ela tem o mais baixo fator de ponderação, ou seja, é a que menos recebe recursos do financiamento. Uma matrícula em EJA vale 80% do que vale a matrícula de um aluno na primeira fase do ensino fundamental urbano, que tem o maior fator de ponderação. Isso incentiva muito pouco o dirigente de ensino a investir nessa modalidade educacional, já que o adulto estudante custa a mesma coisa ou mais que uma criança ou um adolescente. Outro fator é o padrão de colaboração intergovernamental inadequado. Qual a lógica do MEC [Ministério da Educação]?  Ele cria programas como o Brasil Alfabetizado ou o Pronatec [Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego], e os governos estaduais e municipais optam ou não por aderir a eles. Aqueles que quiserem receber recurso federal para implantar uma iniciativa têm de aderir ao programa completo. Esse é um problema, a meu ver. O pacote inteiro pode não ser adequado ao contexto daquela região, daquele município. Cada um desses programas tem um formato, uma lógica e requer uma burocracia de gestão. Alguns municípios pequenos, com sistemas de administração precários, muitas vezes não têm condições de cumprir a burocracia exigida. Isso ocorre com o Brasil Alfabetizado. Uma bolsa para o alfabetizador que pode ser atrativa no Piauí não é em São Paulo.


ÉPOCA - Qual seria a saída para tornar os programas mais acessíveis?
Maria Clara - Seria o caso de mudar a lógica, de não ter mais programas pré-formatados. Seria bom se os municípios pudessem aderir a um projeto e formatá-lo com um pouco mais de liberdade, de acordo com seu contexto.
ÉPOCA - Essa dinâmica mais flexível tem riscos? Ao dar mais liberdade aos Estados e municípios, não fica mais difícil fiscalizar e acompanhar a eficácia do programa?
Maria Clara - Como o governo federal faz a regulação dos recursos dele? Por meio de um sistema centralizado chamado Simec [Sistema Integrado de Monitoramento Execução e Controle].
Desde que o então ministro Haddad lançou, em 2007, o Plano de Desenvolvimento da Educação [PDE], o modelo é o seguinte: o município ou o Estado adere ao PDE e faz um Plano de Ações Articuladas [PAR]. Depois, põe esse Plano de Ações Articuladas lá no Sismec e pede, por exemplo: “Para eu conseguir ampliar educação na zona rural, preciso comprar um ônibus”. Aí ele recebe o recurso e tem de prestar contas. Além disso, os alunos da rede pública são sujeitos a uma avaliação que indica o Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica] da rede em que estudam. É outra forma de regular a eficiência do ensino.
Esse é, basicamente, o sistema de regulação que o Ministério da Educação criou. Ele vale para a educação infantil, para o ensino fundamental e para o ensino médio, mas não para a EJA. Ela está fora desse sistema de fiscalização, seus alunos não são sujeitos a avaliações. Os municípios, por exemplo, quando assumem o compromisso de aderir ao Plano de Desenvolvimento da Educação [PDE], a única coisa com que se comprometem em relação à EJA é manter um programa de alfabetização de adultos. É pouco. Deveriam assumir o compromisso de lhes garantir educação básica e formação profissional. Assinam isso e nem sequer são monitorados. Se não cumprem esse compromisso, não são punidos, e continuam recebendo os recursos. Que fique claro: não estou dizendo que os alunos devam fazer a mesma prova que as crianças fazem. Estou dizendo que a fiscalização e o estímulo do governo federal à EJA deveriam ser mais efetivos.
ÉPOCA - A senhora poderia citar um exemplo de Estado ou município que não tem uma atuação satisfatória em Educação de Jovens e Adultos (EJA)?
Maria Clara - Conheço alguns que não têm programa de alfabetização e não são punidos. O governo do Estado de São Paulo, por exemplo. Ele não faz nada para superar o analfabetismo desde 1996. Empurrou a responsabilidade para os municípios. É claro que municípios maiores, como Ribeirão Preto, Campinas e Santos, não precisam dessa ajuda do governo do Estado. Mas há municípios pequenos com índices de analfabetismo nordestinos. Falta uma indução mais efetiva dessa colaboração entre governos. Enfim, é preciso remunerar melhor e cobrar mais as atuações em EJA.
ÉPOCA - E qual é a última hipótese?
Maria Clara - 
O quarto grande eixo de hipótese tem a ver com a qualidade da EJA. Numa cidade como São Paulo, que tem uma escola em cada esquina, por que adultos não estudam? Eles têm dificuldade em compatibilizar trabalho e escola. Ainda mais onde se perde muito tempo com deslocamentos. Além disso, quais as ofertas de estudo disponíveis? Escolas somente noturnas, com carga horária rigorosa e currículo escolar. O currículo dialoga muito pouco com a cultura e com a necessidade de formação desse perfil de estudante. Enquanto alguém quer terminar os estudos para fazer um curso técnico, outro quer estudar para acompanhar melhor o desenvolvimento dos filhos na escola ou para ler a Bíblia. Um modelo de oferta de educação que reproduz a escola da criança e do adolescente não os atrai. 
ÉPOCA - Por que não os atrai?
Maria Clara - Apesar de não terem escolaridade completa, os jovens e os adultos têm uma bagagem cultural, uma vivência maior. Desenvolveram estratégias de resolução de problemas, têm experiência profissional, construíram uma família. O currículo para eles tem de ser mais flexível.

ÉPOCA - Qual seria um modelo de ensino adequado às necessidades desse perfil de estudante?
Maria Clara - O modelo da escola pública espanhola La Verneda, de Barcelona, é um exemplo. Ela oferece aulas para adultos num sistema em que você pode acumular créditos numa área de conhecimento que mais lhe interessa, em ritmos variados. Isso não viola o marco curricular da educação geral e da educação de adultos. A escola fica aberta de manhã, à tarde e à noite e tem módulos interdisciplinares com duração de três a quatro meses. Assim, fica mais fácil adequar os estudos de acordo com seus interesses e possibilidades. Se você tem uma escola exclusiva para a Educação de Jovens e Adultos, fica mais fácil adequar a lógica da organização escolar às necessidades dessa população.
ÉPOCA - O sistema educacional brasileiro tem estrutura para implantar um modelo como esse?
Maria Clara - A questão é que estamos muito presos a esse modelo do ensino supletivo. Até porque a regulamentação de ensino é bastante rígida. Se você observar a seu redor os adultos com baixa escolaridade que poderiam se matricular na EJA, fica óbvio que os percursos e os currículos que lhes interessariam seriam muito diversificados.

ÉPOCA - Pensando especificamente na EJA, como a senhora enxerga a possibilidade de estudar à distância?
Maria Clara - Acho que devemos usar os recursos tecnológicos como meios auxiliares e complementares de ensino, mas tenho muitas restrições a esse sistema. Estudos mostram que autodidatismo é um conjunto de habilidades e competências pouco comum entre pessoas com baixa escolaridade. Elas têm baixos níveis de letramento, pouca vivência escolar e, portanto, não exercitaram método de estudo independente. Mesmo no ensino superior, a educação à distância tem taxas de abandono altíssimas. É difícil ter disciplina de autoaprendizagem. Fora que, em videoaulas, não há interação. Acho que todo mundo precisa de interação para se desenvolver.
ÉPOCA - Qual a importância de investir em Educação de Jovens e Adultos?
Maria Clara - A importância da EJA vai além da lógica do mercado. Não é só para qualificar mão de obra para acelerar o desenvolvimento do país. É especialmente importante para a formação da cidadania. A educação estimula a participação efetiva das pessoas na vida política e cultural, incentiva a relação positiva entre as gerações. São os jovens e os adultos que votam e educam as crianças. A lógica de investir nas novas gerações e esperar os mais velhos morrerem é equivocada. Não é possível esperar as crianças crescerem para o país se desenvolver.

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